Acabara de acordar de mais uma das longas noites a que nestes últimos anos Esperança estava habituada a ter. Já não guardava na recordação a sensação de dormir profundamente a noite completa. Acordava sistematicamente, o seu sono agora era débil, esfumava-se ao mais leve movimento. O seu simples respirar, acordava-a.
E os sonhos, eram eles os maiores culpados dessa vulnerabilidade.
Sentou-se na cama, com o esforço de quem o cansaço se apodera de cada membro. O acordar não era mais sinónimo de jovialidade, de descanso físico e de energia. O acordar tornara-se um frete, uma obrigação, uma punição de quem o que deseja era permanecer esquecida no meio daqueles lençóis.
Sentada, palpava a mesa de cabeceira à procura do tempo, necessitava de saber que horas eram, talvez hoje tivesse adormecido e, após muitas noites, tivesse acordado depois de todos.
O despertador frio, feito de um metal que indicava décadas de existência, tocou-a. Ligou a fraca luz do candeeiro e as 5:00 da manhã tinham acabado de entrar. Nada que fosse diferente. Aquelas horas faziam parte do seu acordar há 7 anos.
Desviou os poucos lençóis que a cobriam, colocou os pés no chão ainda sentada na ombreira da cama.
Um arrepio apoderou-se da sua frágil figura, a tijoleira que o cobria estava gelada.
Esquecia-se sempre deste promenor.
A fraca luz que a lâmpada do candeeiro emitia guiou-a até à janela, que abria ritualmente todas as manhãs, fizesse sol, fizesse chuva.
O ar da rua era a única coisa que lhe recordava que possuia sensações. Abria a janela, de par a par, olhava o jardim, nesta época primaveril coberto de inúmeras flores, algumas árvores com frutos emitiam o seu odor peculiar e o ruído vibrante dos cantares das aves nelas pousadas enchiam o silêncio da manhã de cantares. O seu quarto ficava no 3º piso, podia por isso ter uma vista previligiada sobre aquele jardim e a colina sentada ao fundo do horizonte.
Este momento era o que mais apreciava quando despertava, jamais abdicava dele.
O quarto era pequeno, apenas possuia uma cama em ferro, um banco junto à janela, situada do lado direito da cama, e uma escrivaninha onde guardava e recordava o seu passado. Dentro daquele móvel jaziam histórias em papel, histórias que contavam um passado, que relatavam uma vida que ela intensamente queria esquecer.
Uma batida oca, mas firme na porta desperta-a do estado sonâmbulo com que olhava lá para fora, encostada ao parapeito da janela. Virou-se repentinamente, assustada pelo barulho. Era raro irem ao seu quarto, era raríssimo ser àquela hora. Olhou o relógio de rompante, enquanto se dirigia à porta. Marcava as 5:20.
Ainda mesmo antes de chegar ao puxador para a abrir, um papel escorregou pela fina linha do fundo da porta, passou-lhe pelos pés e parou no meio do aposento.
Era um envelope.
Ficou inerte a olhá-lo.
Ninguém sabia que ali estava, há 7 anos que tinha cortado laços com o mundo exterior, aquele era o seu refúgio, nada nem ninguém poderia saber da sua existência ali.
Sentia o pulsar do coração a acelarar, as mãos tremelicavam e uma transpiração abrupta inundava-as de incertezas.
- Quem é? - correu à porta.
Abriu-a com firmeza, mas ninguém estava para lhe tirar aquele peso terrível da cabeça. Olhou para o corredor, ainda sob a penumbra de uma manhã mal nascida. Olhou para a esquerda e para a direita e nem uma sombra se afigurava.
Um silêncio abrasador acompanhava aquele momento.
"Não vou abrir esta carta" pensava, juntamente que uma respiração sofrêga apoderava-se dos seus pulmões.
Sentia medo... deu dois passos para trás e voltou ao interior do quarto, que tão bem conhecia o seu passado, as sua lágrimas, as mágoas.
De costas, olhava a porta já fechada à espera que de novo lhe batessem e recolhessem aquela carta. Poderia ter sido um engano.
Mas não .... ela continuava ali, no chão, à espera que a abrissem.
Voltou-se lentamente, fitou-a, aproximou-se a medo e baixou os joelhos em direcção ao chão. Coisa que ela fazia a maior parte do seu tempo.
- Esperança Sancho - leu no remetente - sou eu, esta carta é-me dirigida.
Um suor gelado escorria-lhe pela face, agora tinha a certeza que alguém sabia da sua existência, alguém sabia da sua permanência naquele local.
Sentiu medo, não conseguia tocar no envelope, tinha a certeza de que ali estaria algo que não queria ler.